Direitos Humanos, Cinema e Alteridade
- Simone Vilk
- 30 de ago. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 31 de ago. de 2023
Explorando a interseção entre Direitos Humanos e Arte, este artigo examina a partir do conceito de "cinesofia" de Luis Alberto Warat a potencialidade do cinema como promotor de novas sensibilidades e práticas de alteridade e cidadania.

Pensar os direitos humanos a partir da obra e pensamento de Luis Alberto Warat é trilhar o caminho da alteridade em espaços que contemplam a cidadania, a educação, a arte, a sensibilidade e o pensamento crítico e autônomo dos sujeitos. Para Warat, a alteridade é uma prática a ser construída continuamente dentro das relações humanas, um verdadeiro ideal. A filosofia do autor versa a respeito da diversidade cultural, do senso político e da emancipação subjetiva dos sujeitos como caminhos para essa construção.
Para alcançar esse ideal, Warat diz ser necessário uma mudança de visão de mundo que interrompa essa cultura de indiferença e alienação atualmente em voga. A emancipação social e política surge como rotas de fuga e de encontro do homem com sua humanidade e com a humanidade do outro, encontros de coexistência fundados na alteridade. Nesse sentido, a proposta waratiana para os Direitos Humanos estabelece “a necessidade de procurar uma relação mais rica com a razão, uma razão capaz de denunciar o substrato de desumanização, que acompanha a razão instrumental” (WARAT, 1997, p. 13). Extremamente desafiador, posto que esta vida está contida dentro de espaços hostis e submetida às ferrenhas estruturas do poder mundial, reguladas pelo mercado econômico, em um universo altamente tecnológico, globalizado e subserviente a estas regras, inclusive do ponto de vista do acesso aos direitos e de sua efetividade.
Estas estruturas, em grande parte, ampliam as desigualdades sociais e não poucas vezes desprezam direitos já conquistados, sobretudo, princípios que não estejam alinhados à manutenção de seu status quo, transformando os indivíduos em massas consumeristas. Uma sociedade composta por indivíduos egoístas, fechados em si mesmos e indiferentes a estas realidades, que vivem sob o signo do medo generalizado, medo da violência e medo do outro (WARAT, 2010).
Na prática, se estabelece o desafio de repensar esses valores e encontrar caminhos para uma nova política educativa de Direitos Humanos que se proponha a ensinar a reivindicação do “direito a ter direito”, que possibilite a inclusão social, a autonomia e o sentido de comunidade (WARAT, 2003). Ou seja, recompor, reconstruir, refundar a cultura para além do estabelecido em critérios universais e caminhos repletos de exclusões e crenças ideológicas, que não se estabeleceram nem socialmente e nem culturalmente, mas que pelo dito valor universal passam a serem verdades inquestionáveis, absolutas, como tem sido as normas mercantilistas e seu viés massificante.
Neste horizonte, também Milton Santos (2007) alerta para a visão exclusivamente mercantil, que suprime a cidadania, transformando o cidadão em consumidor, denunciando que a noção de direitos políticos e individuais foram desrespeitadas, pisoteadas e são constantemente anuladas frente a aceitação sem limites de uma racionalidade econômica aplicada por grandes corporações empresariais (nacionais e estrangeiras) com o aval e apoio das forças estatais. Este cenário consolidou a vitória do consumo pelo consumo, suprimindo a vida comunitária baseada na solidariedade. O autor denuncia ainda um modelo político e cívico instrumentalizado pela doutrina cientificista do mercado econômico que amplia as desigualdades sociais e aumenta a pobreza (SANTOS, 2007).
Com isso, o senso de cidadania fica comprometido, não apenas frente a um modelo de educação alienante, mas também frente a insensibilidade que emana das forças do mercado e do Estado, restando um “ser” refém, submisso e alienado, que troca sua real existência por uma pretensa ilusão de proteção.
É por isso que, para Warat, não se pode falar em Direitos Humanos ignorando o componente da alteridade, pois esta deve ser a essência da sua estrutura, no que deveríamos começar a falar em “Direitos Humanos da Alteridade” (WARAT, 2010). Isso seria nada mais que falar de um sentido de coexistência, do cuidado com o outro e de um sentido de comunidade, de cidadania. É vislumbrando um território democrático, comunitário, plural, interdisciplinar e poético que Warat estabelece uma conexão entre Arte e Direitos Humanos, e propõe a “cinesofia” como uma forma sensível de sentir e interpretar o mundo, apresentando o cinema como um devir da alma humana, capaz de instituir diferentes modos de alteridade e novas sensibilidades que nos torne capazes de mediar conflitos inerentes à nossa própria natureza.
Construir uma rota de fuga através do imaginário, desenvolvendo sensibilidades que permitam sentir e ver a partir das lentes de distintas visões de mundo, as realidades que atravessam o nosso cotidiano — tantas vezes invisibilizadas pela mais dura racionalidade jurídica, econômica e política — é, sem dúvida, o caminho proposto por Warat.
Há em toda obra e pensamento waratiano um protesto, uma irreverência e um inconformismo diante do silêncio e da acomodação frente as injustiças. Warat clama por movimento, paixão e desejo, e afirma: “A Rua grita Dionísio!”. É fato que o autor argentino possuía uma “baianidade” efervescente e era provocativo em sua “brasilidade”. A arte para ele sempre foi potência capaz de transformar e construir novas percepções. Ele cunhou o termo “cinesofia” como forma de nomear um encontro entre a filosofia e o cinema, um novo modo de ver e se deixar ser afetado pela sétima arte, onde a ideia é sentir o cinema, conectar-se com seu poder transformador, mergulhar na subjetividade.
Nessa vertente, Bakhtin, segundo Warat, reivindicou o valor comunicacional das formas imagéticas na compreensão de mundo onde não se pode excluir o afetivo para este entendimento. A partir desse lugar, onde se prioriza um espaço ético-estético criativo para o desenvolvimento da subjetividade, é que Luis Alberto Warat vai propor a relação entre Direito e Arte. Uma proposta pedagógica de construção do saber a partir da experiência, do sensível e dos afetos. Neste caminho, o cinema surge como uma forma de intercâmbio coletivo ligado ao imaginário, em um novo modo de assistir a filmes que cartografe as relações afetivas e intersubjetivas (WARAT, 1995, 2004). Assim, para Warat, esse processo constitui-se em uma prática política para a autonomia, para a cidadania e para a alteridade. É um encontro do homem com o mundo, consigo mesmo e com os outros, uma nova forma de ver, perceber e efetivar os Direitos Humanos.
REFERÊNCIAS:
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: EdUSP, 2007.
WARAT, Luis Alberto. Educação, Direitos Humanos, Cidadania e Exclusão Social: fundamentos preliminares para uma tentativa de refundação. 2003.
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito III: o direito não estudado pela teoria jurídica moderna. Porto alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997.
WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, surrealismo e cartografia. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010.
WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.
WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
Simone Vilk é membro do GPPEC/UNIFACS-CNPq, pesquisadora júnior/PIBIC e graduanda em direito pelo Centro Universitário Social da Bahia/UNISBA.
Belíssima análise Simone. Parabéns!
Que texto belíssimo, potente, repleto de emoção e sensibilidade. Parabéns, Simone! Warat é realmente encantador, sua obra captura de forma única esse entrelaçamento entre o direito, o homem e o mundo. Viva Warat!