"Duas estradas num bosque se bifurcavam, e eu/ A menos percorrida trilhei,/ E isto fez toda a diferença” (Robert Frost)
O filme Sociedade dos Poetas Mortos, lançado em 1990, dirigido por Peter Weir e estrelado por Robin Williams, retrata a dinâmica de uma escola de alto padrão, tradicional, masculina e com um sistema de ensino autoritário, que contrata um novo professor de inglês, John Keating. O enredo do filme se desenrola a partir de um novo horizonte de vida e de mundo apresentado pelo modo incomum de ensino deste novato professor.
O grande ponto de inflexão na história ocorre quando estes métodos de Keating conflitam com a tradição da escola preparatória, voltada para a formação de homens técnicos, prontos para a pragmática da vida social e que condicionam suas vidas para o estudo, trabalho e o orgulho de seus pais. A ausência de manejo da sensibilidade dos garotos era latente, notadamente na matéria de Keating. Isto o faz apresentar aos alunos a urgência de aproveitar a vida verdadeiramente, através da busca desta sensibilidade dentro de cada um deles, para que não se tornassem homens obtusos e arrependidos.
“Porque, acreditem ou não, todos neste recinto um dia pararão de respirar, esfriarão e morrerão. (…) Carpe diem, aproveitem o dia, rapazes. Tornem as vidas de vocês extraordinárias.”
Assim, os alunos Todd Anderson, Neil Perry e outros refundam a Sociedade dos Poetas Mortos, uma sociedade secreta (para burlar as proibições da escola), que se reúne numa caverna para ler e discutir as obras de antigos poetas, sob a perspectiva dos reflexos destas obras nas suas vidas pessoais. A Sociedade dos Poetas Mortos é a concretização do projeto de Keating de apresentar uma nova realidade para aqueles jovens que tiveram suas verdadeiras potencialidades limitadas por um ensino restritivo.
A poesia, juntamente com o confronto da efemeridade humana e da juventude são os instrumentos de Keating para colocar no coração daqueles jovens a inquietude diante da noção de imortalidade e controle da vida, que perpassa uma formação de pensamento tradicionalista. A inconformidade em seguir um caminho ou um modo pré-estabelecido de compreender o mundo é uma bússula que aponta para a fundação de uma nova relação com a vida, menos objetificadora e dominadora.
Esta nova relação é a que se deixa fluir, aproveitando cada momento se sentindo parte da vida, e não o senhor dela. O rompimento de Keating com uma formação insensível de jovens para o mercado de trabalho é uma mensagem poderosa de questionamento sobre qual mundo estamos fundando diariamente, ainda mais estando diante de um império da técnica humana, das inteligências artificiais, dos processos de desumanização promovido pelas guerras e de uma sociedade que vê as relações humanas como um grande mercado, em que se pode vender, trocar e dispensar os semelhantes.
E o que isto importa ao Direito? Ou melhor, o que isto importa ao pensamento jurídico?
O convite de Keating para uma nova relação com o mundo reverbera em todas instituições da vida que dependem do manejo humano. Isto porque o humano está necessariamente mergulhado neste contexto de construção do conhecimento tradicional e objetificador.
Sendo mais concreto, a filosofia moderna, notadamente de viés Cartesiano, impõe uma epistemologia na qual a razão do homem é a portadora do acesso à verdade. Ou seja, todo o mundo ao redor é um mero objeto de descoberta e exploração do homem.
Penso, logo existo. (René Descartes)
Aqui, o sujeito cartesiano é o sujeito solipsista, ou seja, na esteira do sistema heliocêntrico, assim como o sol (solis), o homem é o centro do universo, e de sua força gravitacional/razão, o movimento de todos os outros astros/objetos estão condicionados. Deste entendimento de relação entre homem e mundo é que se constrói, também na Teoria do Direito, formas de compreensão da interpretação jurídica e do Direito em si que partem desta premissa de centralidade da consciência do homem, desconsiderando fatores históricos, sociais e culturais.
E o que isto importa a esta coluna "Sociedade dos Juristas Mortos"?
Esta coluna foi pensada com o propósito de tentar trazer algumas discussões que se orientam pelo contraponto à dominância do pensamento moderno/dogmático/objetificador na Teoria do Direito. Ou seja, seguir o caminho que tem sido apontado por alguns pensadores como Heidegger, Gadamer, Warat e no Brasil, Lenio Streck. Busca-se atender o convite de Keating e pensar que é possível entender e interpretar o Direito com sensibilidade, atrés das artes e da filosofia.
Além deste movimento de compreender o Direito, seu papel e adjacências com sensibilidade, volta-se também para um aspecto prático da aplicação do direito. Interpretações judiciais que partem da premissa de que a razão/consciência do julgador é capaz de desvendar o verdadeiro sentido de determinada lei, caem na cilada apontada por Keating, de instrumentalizar e dominar o mundo para seus interesses. Aqui, a dominação do mundo está na dominação da linguagem.
A razão humana é limitada, e toda experiência interpretativa é pública. Isto porque a linguagem, através da qual se manifesta o ato de interpretar, é construída numa dinâmica comunitária de atribuição de sentidos às coisas. Se se presume que a linguagem pode ser dominada para afirmar interesses próprios, cai-se numa armadilha de pretensa dominação da razão do homem na atribuição de sentidos de sua realidade.
Em outras palavras, esta coluna busca realizar um pouco do que foi feito pela Sociedade dos Poetas Mortos: trazer debates que ascendam a chama da inquietude no que se refere a relação entre o homem e mundo, e instigar reflexões através da sensibilidade para a compreensão da realidade. O Direito faz parte do mundo e faz parte do homem, de modo que sua teoria traz elementos que decorrem diretamente desta relação.
A linguagem é dotada de nuances, é histórica, condicionada e está em constante movimento. É preciso ser mais desconfiado quanto à capacidade do homem de interpretar o Direito, e reafirmar a necessidade de realizar esta atividade interpretativa com responsabilidade pública. E aqui, as artes auxiliam na compreensão destes elementos da linguagem.
Trata-se de se utilizar deste espaço para explorar pensadores e juristas que defendem que é possível fundar uma relação mais democrática e harmônica no Direito, através da fundação de uma relação mais democrática e harmônica do homem com sua realidade.
Parabéns pela belíssima escrita. A proposta de uma abordagem mais sensível e humanizada no Direito, como a defendida pela "Sociedade dos Juristas Mortos", é fundamental para promover uma justiça mais inclusiva e compassiva.
No entanto, é crucial reconhecer e abordar as preocupações relacionadas à imparcialidade dos julgamentos, o escritor e professor da Unisinos José Rodrigo Rodriguez, em seu livro: “Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro).” O controle das decisões judiciais ocorre por meio de constrangimentos institucionais, que se preocupam mais com o efeito do desenho institucional sobre os julgamentos do que com a maneira como os juízes constroem suas sentenças. Esses constrangimentos devem ser originários de um debate público racional e moldar a estrutura do Judiciário, “a forma de controle que não se preocupa diretamente com a maneira pela qual o juiz constrói ou justifica sua sentença, mas sim com o efeito do desenho institucional sobre os julgamentos realizados pelo Poder Judiciário” (RODRIGUEZ, 2013, p. 151).
O professor propõe alternativas para orientar e estruturar o Judiciário, baseadas em modelos de racionalidade jurídica inspirados em Kelsen e na pluralidade de decisões possíveis. Ele reconhece que seu modelo não possui validade absoluta, mas o apresenta como uma possibilidade diante da disputa entre diferentes modelos no cenário jurídico brasileiro. O objetivo tanto dos constrangimentos quanto do modelo proposto é eliminar as zonas de autonomia no sistema judicial.
Assim, frente à necessidade de aplicabilidade dos princípios jurídicos universais para garantir direitos fundamentais, aos desafios da interpretação objetiva em casos complexos, à possibilidade de manipulação e distorção dos discursos emocionais e à importância da inclusão e representatividade de todas as comunidades e grupos sociais, encontrar um equilíbrio entre sensibilidade e objetividade é essencial para fortalecer a justiça, a igualdade e o respeito aos direitos humanos em uma sociedade democrática.
Referência
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). Editora FGV, 2013.
Ótima síntese. Trago uma contribuição para o debate: a relação do Direito com a política, à luz da problemática levantada pelo post. Num universo de campanhas eleitorais cada vez mais digitais, de programas partidários cada vez mais fisiológicos, e de candidatos cada vez mais entregues ao marketing, qual é a situação do compromisso político? Como pensar a preservação da democracia representativa nesses termos? Como pensar o desenvolvimento socioeconômico? É evidente um contexto de crise quanto à essas definições. Pois, se de um lado, a tecnologia proporcionou a conexão entre pessoas distantes, de outro, proporcionou o distanciamento de princípios (igualdade), porque, como uma caixa de pandora, sem limites, permitiu que o preconceito se fortalecesse cada vez mais. Pois então, se as campanhas estão impossibilitadas de resgatar o sentimento democrático, onde buscar a solução? Dentro do governo? Difícil. Pois há mecanismos institucionais (formais e informais), garantidores da vitória eleitoral, que acompanham o governante até o seu último dia de mandato. Mas o pessimismo não enche barriga. Diante desse universo técnico, insensível e distante, não nos esfriemos, nem deixemos de lutar, porque a real responsabilidade do mantimento da democracia e de todos os valores e princípios que a acompanham é nossa, e que bom poder dividir ideias em espaços como esses, sem a necessidade de irmos à cavernas. Mas caso precisemos, eu serei um dos que contribuirá com a lenha para a tocha da esperança.
O texto toca na ferida de um modelo de ensino jurídico excessivamente dogmático, calcado na transmissão unilateral de conteúdos e na "escolarização" dos indivíduos. Um ensino do Direito descolado das instâncias fecundas da existência, das paixões, dos afetos, sempre preso às enunciações rígidas de um discurso autoritário que não admite e não reconhece o "outro", como diria Warat. Estamos criando seres "desencantados", incapazes de realmente acessarem a potencialidade do pensar e das emoções, castrados em seus sonhos e reféns das ilusões alheias. Como escreveu Warat: "os homens precisamos recomeçar nossos sonhos e possibilidades de amores, sair da Matrix para refundar, na autonomia, nossa própria trama de ilusões. Temos que reconquistar a possibilidade de ser o autor inaugural das ilusões que sustentam nossos sentidos e desejos. A autonomia em última instância, em ser mais profundo, é a possibilidade de construir por si as ilusões próprias, aquelas que nos permitem atribuir a nossos sonhos, desejos e sentidos o estatuto de realidade. Foi o que sempre Borges nos sussurrou ao ouvido. E Cortázar batizou como a alma dos Cronópios". Ao ler este texto de Luiz, sinto-me tocado pelos Cronópios de Cortázar, imerso nos jardins de Borges, onde as possibilidades se multiplicam e a vida se adensa. Precisamos pensar o Direito desde e para a autonomia, no devir de sua linguagem e sentidos, ou como na síntese do autor: na relação do homem com sua realidade, o que envolve, acima de tudo, o seu contexto existencial. Ou o Direito é pensado desde este lugar da intersubjetividade, ou estará sempre fadado a abstração de seus institutos que pouco ou nada dizem sobre a realidade vivida.