Publicada originalmente entre 1986 e 1987, a história criada por Alan Moore segue enunciando dilemas políticos e filosóficos vividos na contemporaneidade.
O trecho acima é retirado da história em quadrinhos que é considerada o maior marco do viés realista que começou a ser dado às histórias que antes não se preocupavam em elaborar camadas mais dramáticas para os personagens e suas motivações, especialmente devido ao público alvo ser majoritariamente infantil. Watchmen foi escrita por Alan Moore e ilustrada por David Gibbons e retrata desde a complicada dinâmica interna de um grupo de heróis até a geopolítica de uma sociedade alternativa na qual os Estados Unidos venceram a Guerra do Vietnã e Richard Nixon era o político mais poderoso do país, chegando ao terceiro mandato.
Nesta sociedade alternativa (ou nem tanto assim), cada personagem é a expressão alegórica de determinada visão de mundo, materializada pela manifestação de suas individualidades. Por isso, seus embates são também interações destas visões de mundo. O autor preencheu a construção dos vigilantes a partir de diferentes matizes, mas aqui, destaca-se a representação do autoritarismo norte-americano expressa no Comediante.
O Comediante é o personagem-gatilho de toda a trama, e é também o autor da frase destacada na tiragem acima. Ao receber a pergunta do Coruja, membro que representa a retidão moral e a legalidade, sobre "O que aconteceu com o sonho americano?", o Comediante é categórico ao responder que "virou realidade".
Aqui, pode-se observar o que José Luís Fiori (2020) apontou em sua obra "A síndrome de Babel e a disputa do poder global" como a fonte primordial das contradições vividas pela Ordem Mundial erigida na perspectiva do sonho americano, notadamente no pós-Guerra Fria.
Segundo o autor, o mito de Babel "conta a história dos homens que se multiplicam, depois do Dilúvio, unidos por uma mesma linguagem e um mesmo sistema de valores, propondo-se a conquistar o poder de Deus através da construção de uma torre."
Dessa forma, Deus reagiu ao desafio dos homens e os dividiu, atribuindo a cada nação um sistema de de valores e línguas diferentes, de modo que não pudessem mais se entender e agir em conjunto. Portanto, Fiori destaca que Deus abriu mão de sua "universalidade" e escolheu um único povo como enunciador de seus desígnios, instrumentos de vontade, e braço de guerra contra os povos que ele mesmo criou ao dispersar os homens em Babel.
Fundamentalmente, a hipótese de Fiori é a de que o sistema mundial, e essencialmente os Estados Unidos, estariam passando pela síndrome de Babel. Isto porque, após o chamado "fim da história" nasceu um mundo unipolar, percebido na vitória da ordem liberal e da universalização dos valores ocidentais propalados pela política externa norte-americana, num contexto de inequívoca centralidade e dominância do país a partir da globalização do sistema interestatal capitalista e sua cartilha de regras criadas pela ordem liberal.
Desta expansão do poder americano, juntamente com a priorização de uma organização mundial pautado no comércio e na troca, tanto a Rússia quanto a China se beneficiaram deste sistema de regras do sistema interestatal, e, juntamente com Irã, Turquia, Coreia do Norte, Brasil (mais recentemente) e outros países, passaram a questionar a hierarquia deste sistema capitaneado pelos Estados Unidos.
Ou seja, foi necessariamente a convergência e homogeneização normativa do sistema global, aliado ao aumento de poder e de unidade dos Estados que questionam a centralidade americana a partir de suas próprias "regras do jogo", que começaram a ameaçar o poder global norte-americano, forçando-os a mudar a estratégia e dar uma guinada completa em sua política externa, a exemplo da nova estratégia de segurança nacional anunciada pela Casa Branca em 17 de dezembro de 2017, em que apontam contra as "potências revisionistas", como China e Rússia, e que foi mantida, em linhas gerais, na estratégia de segurança nacional do governo Biden-Harris.
Portanto, arremata Fiori, os Estados Unidos decidem abdicar de sua "universalidade moral" e desistir do projeto iluminista de "conversão" de todos os povos aos valores e éticas ocidentais, ao mesmo tempo em que não abrem mão de perceber seus valores como superiores aos demais e se assumirem como "povo escolhido", na medida em que ainda assumem o exercício unilateral de seu poder, através da força e do posicionamento como um "império militar" de escala global (vide falas recentes do presidente Joe Biden sobre os Estados Unidos serem o império mais poderoso da história da humanidade).
Na estratégia de segurança nacional de 12 de outubro de 2022, o Governo Americano pressupõe a existência de um ambiente global de concorrência, e que portanto, os três principais pilares de sua política externa seriam: "Investir nas fontes e ferramentas subjacentes do poder e da influência americanos;Construir a coalizão de nações mais forte possível para aumentar nossa influência coletiva a fim de moldar o ambiente estratégico global e resolver desafios compartilhados; e Modernizar e fortalecer nossas forças armadas para que estejam equipadas para a era da competição estratégica."
A síndrome de Babel se manifesta na conclusão do diálogo entre o Coruja e o Comediante, pois a desintegração percebida é efeito direto da realização do sonho americano. Nesta nova versão, cabe ao "povo escolhido" disputar e impor seus valores através da força. É o que brilhantemente conclui José Luís Fiori:
Ou seja, os Estados Unidos se assumem como um "povo escolhido" e abdicam de sua "universalidade moral" para alcançar a condição de um "império militar" de escala global. No entanto, ao mesmo tempo, os Estados Unidos reconhecem e valorizam o sistema interestatal e se propõem a sustentar uma competição permanente pelo poder, com as outras grandes potências, numa luta que não terá árbitros nem posições neutras, e na qual todas as alianças e guerras serão possí-veis, em qualquer momento e lugar. Um sistema no qual cada país terá que fazer valer seus interesses nacionais por si mesmo, através do aumento contínuo de seu poder econômico e militar, através de uma corrida tecnológica que deve levar a humanidade ao patamar sem precedente de inovação armamentista.
A síndrome de Babel antecipada em Watchmen revela uma dimensão de reflexão que vai além da geopolítica, mas que abarca também o questionamento das contradições que a supremacia dos valores e direitos liberais-americanos. Assim, é possível compreender que trata-se de importante perspectiva para analisar os dilemas da Ordem Mundial "unipolar", expressas na deflagração de diversos acontecimentos recentes de fragmentação territorial e política, além dos primeiros passos para o fortalecimento de uma organização global para além do comando norte-americano no chamado "sul global". É uma análise que não se pretende como exercício de futurologia ou como meio de explicação de todas as atitudes da "polícia do mundo", mas sem dúvidas, é uma lente de leitura essencial.
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Luiz Eduardo de Sousa Ferreira é membro do GPPEC/UNIFACS-CNPq, mestrando em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS e pós-graduando em Filosofia e Teoria Geral do Estado pela FADISP/UNIALFA.
Muito bom!