Sociedade dos Juristas Mortos
A obra atemporal de Frank Hebert aponta um debate que se desdobra em diversos outros debates que cercam a experiência humana no mundo: desigualdade, exploração, construção narrativa e dominação. O texto contém alguns spoilers.
Duna, publicado como livro em 1965, escrito por Frank Hebert, voltou ao cinema em 2024, em adaptação dirigida por Denis Villeneuve. Usualmente, temas como a exploração de recursos, dominação, ecologia e fundamentalismo religioso são associados à obra, visto que de fato estão na sua centralidade.
Porém, venho trazer dois outros temas que decorrem indiretamente da figura do protagonista da história, Paul Artreides, e que me fizeram pensar sobre o universo de reflexões que podem surgir em qualquer obra de arte, principalmente naquelas que são marcos absolutos na história da humanidade.
Epistemologia, Sujeito e Hermenêutica
O ser humano sempre buscou compreender o mundo e os seus elementos. No caminhar da espécie, diversos momentos históricos possibilitaram o surgimento de determinados paradigmas epistemológicos que direcionaram essa busca pela compreensão. Antes da ampla difusão da racionalidade moderna, a tradição e a autoridade poderiam ser constatadas como os principais critérios de busca pela verdade, visto que os que proferiam os "fatos" tinham a credibilidade social decorrente da posição que ocupavam.
Essa noção de sociedade hierarquizada deu lugar ao império da razão, fundado em uma percepção de que somente é verdadeira uma afirmação que pode ser demonstrada de maneira racional e objetiva, derrubando-se a representação do poder como fonte do conhecimento legítimo. A essa forma de busca do conhecimento, pode-se classificar como lógico-dedutiva, é protagonizada por um sujeito solipsista que é alçado à condição de "senhor dos sentidos".
Nesse período, vigorou o primado da subjetividade, impulsionado pela filosofia cartesiana, na qual o sujeito é o centro da busca pela verdade, dispondo de racionalidade e método para encontrá-la. Essa verdade moderna está posta e é objetiva, independente da atividade do sujeito, que deve busca-la de maneira racionalmente construída. Por isso, é uma verdade que pode ser acessivel a qualquer um.
O pensamento moderno apresenta uma verdade existente e obscura, que cabe à razão humana iluminar. Tal entendimento da realidade remete à jornada do jovem Paul Atreides. Desde o inicio da jornada Paul é apresentado como um sujeito dotado de grandes habilidades e sabedoria.
Ao utilizar-se da especiaria do planeta Arrakis, Paul é capaz de ver as possibilidades de seu futuro e do império, mas de forma nebulosa e desconexa. Cabe ao personagem, através dos conhecimentos reunidos no decorrer da jornada e em seu treinamento prévio, descobrir a verdade por trás das visões e compreender as implicações de suas escolhas e estratégias, que sem exagero poderiam ser chamadas de escolhas metodológicas para uma guerra.
O paralelo com a racionalidade moderna se dá pela existência de uma verdade posta, ainda não conhecida, mas que pelos meios corretos pode ser acessada. Apesar das habilidades amplificadas de Paul, todo sujeito que consumir a especiaria pode também viver a mesma experiência de visões.
Além disso, pode-se afirmar que o arquétipo encarnado por Artreides é de um sujeito que tem o mundo, o passado, presente e o futuro em suas mãos. Ou seja, assim como o sujeito moderno, tem todas as repercussões da realidade condicionadas às escolhas de sua razão e de seus interesses pessoais.
Artreides é a medida de todas as coisas em seu mundo, a sua percepção da realidade condiciona a construção de sua verdade como verdade universal. A repercussão desta verdade universal é ainda mais concreta, na medida em que a narrativa criada a partir da figura Messiânica de Paul define a forma de exploração dos recursos de Arrakis, a relação do povo da areia com seus dominadores e os rumos políticos do Império Galáctico. Além disso, subsiste na figura de Paul uma triste ironia que também perpassa o sujeito moderno: a sua construção como libertador faz com que este se torne um dominador.
O sujeito solipsista construido pela filosofia moderna é viciado em si mesmo. A linguagem se torna um instrumento de domínio do mundo, e não uma condição de compreensão deste. A hermenêutica juridica filosófica busca justamente romper com este parâmetro de sujeito. Talvez este tema e este recorte no sujeito moderno tenha aparecido de maneira repetida nas colunas deste fórum. Porém, acredito que seja importante reiterar a importância da análise crítica desde fenômeno, na medida em que boa parte da construção do conhecimento na teoria do direito parte deste paradigma, notadamente na força ainda atual da teoria de Hans Kelsen, e das teorias contemporâneas de Hebert Hart e Robert Alexy.
Desigualdade
A desigualdade é um tema que pode ser visto de maneira expressa no sistema hierarquico da organização política de
Duna, uma espécie de Feudalismo Galáctico. Porém, a reflexão que proponho vai em outro sentido, que coloca a realidade do livro/filme como um ponto de partida. A história se desenrola em Arrakis, um planeta que possibilita a extração da especiaria fundamental para o deslocamento interplanetário e para o sistema de localização do império.
Em Arrakis, vivem o povo da areia, os Fremen, explorados e acostumados a viver numa escassez de recursos, principalmente de água, e alguma casa nobre, ou os Harkonnen ou os Artreides, que organizam a exploração da especiaria. Os Fremen vivem na constante espera de um Messias libertador, aquele que irá conduzir o povo da areia para o controle sustentável do planeta Arrakis (na língua dos Fremen, Duna).
Em determinado momento, ao tratar da possibilidade de manipulação do povo da areia, Paul enuncia a seguinte frase:
"Quando os recursos são escassos, o medo é tudo que nos resta".
Observando os dilemas vividos na contemporaneidade, principalmente no Brasil, eu me perguntei: e quando os recursos são abundantes, porém mal distribuidos, o que resta para aqueles que tem medo? A resposta para essa pergunta não é fácil, visto que não é possível atribuir apenas à desigualdade a ocorrência da violência, pobreza, fome e a ascensão da extrema direita.
Porém, é possível observar que a desigualdade é uma peça fundamental no fortalecimento destes fatores que obstam o desenvolvimento do país. E o que afirmam, entre muitos outros, Sérgio Adoro, ao tratar da violência; Gilberto Bercovici e Lenio Streck, ao tratar da teoria constitucional; Gabriela Lotta ao debater uma teoria de politicas públicas no pais; Luiz Gonzaga Belluzo, Clara Mattei e Laura Cardoso, ao pensar a economia brasileira e seus percalços.
Ou seja, a desigualdade, notadamente a social e econômica, dá um cenário que possibilita a manipulação dos ressentimentos e dos medos de uma ausência de recursos. É a força motriz de um "micro-cosmo" erigido no medo, no afastamento, e principalmente, na exploração. Exploração esta que dá argumentos fundamentalistas, através da religião, e que justifica ainda mais espoliação, ao colocar as pessoas em gaiolas imaginárias através de mitos individualistas da teologia da prosperidade, do empreendedorismo de si mesmo, e da meritocracia.
Da péssima distribuição de recursos (e o Brasil é o principal país do mundo nesse quesito), decorre uma concentração de recursos. Infelizmente, da concentração de recursos, nasce uma concentração de direitos. Por isso, não é possível fazer Teoria do Direito no Brasil, sem pensar a questão da desigualdade e suas decorrências, questionando-se:
Quando os recursos estão concentrados, o que resta para quem está vulneravel?